A Permacultura pode salvar o mundo?

“Se todos quisessem, tudo mudaria sobre a Terra num momento”, escreveu o poeta russo Dostoievski em sua narrativa fantástica intitulada O sonho de um homem ridículo, animando-nos a refletir sobre os meios de que dispomos agora para salvar o mundo da grande ameaça que a humanidade representa hoje para a vida no planeta,
inclusive a própria vida humana. Para nós, permacultores, a questão exige centralidade porque dela depende a nossa prática, os nossos agires e o desenvolvimento do território recém descoberto da Permacultura.

Com efeito, acreditamos no potencial teórico e prático deste sistema, afinal, foi ele que nos ofereceu a ética, os conceitos, os princípios e métodos de design necessários para trabalharmos pela sustentabilidade da Terra. Por isso mesmo, o primeiro grande desafio será o de fazermo-nos co-criadores e co-responsáveis pelos rumos da Permacultura no Brasil e no mundo.

Nós que herdamos e incorporamos em nossas vidas os marcos estabelecidos por Bill Mollison e David Holmgren, podemos e devemos explorá-los até alcançar as cone-xões mais distantes, até o ponto em que nos seja possível deslindar novos problemas à luz das nossas próprias descobertas (individuais e coletivas). Podemos e devemos ir além dos limites alcançados pelos pioneiros, porque, é preciso admitir, os trabalhos pioneiros, como dizia o psicoterapeuta austríaco Carl Jung, apresentam desvantagens: “Perambulamos por regiões desconhecidas; somos desviados do caminho por analogias, perdendo repetidamente o fio de Ariadne”.

A segunda geração da Permacultura tem condições de chegar a conclusões e percepções mais avançadas, de regenerar a teoria, trazendo algo de novo para ela. “Uma teoria não é algo inerte, não é uma coisa, mas algo que necessita regenerar-se a si mesma, reencontrar as virtudes originais, as suas virtudes fundamentais”, diz o professor francês Edgar Morin.

Será preciso ainda pôr em prática estratégias sugeridas por Bill Mollison no Designer’s Manual (ainda sem tradução no Brasil) e que ainda não foram validadas, a fim de podermos oferecer ao mundo mais daquilo que é um dos grandes valores da Permacultura: tecnologias apropriadas à sustentabilidade.

Na qualidade de co-criadores e co-responsáveis, haveremos também de assumir verdadeiramente a ética que nos foi legada – de solidariedade e de cuidado com a Terra e com as pessoas, fundada sobre fatos históricos e dados sociais, econômicos, políticos e ambientais estarrecedores, que nos colocam num ponto decisivo da história da biosfera e da história da humanidade. Este é o nosso segundo grande desafio: permitir que os princípios éticos da Permacultura inspirem todas as nossas ações.

Ética, consciência e espiritualidade

O aparecimento da ética na biosfera deu-se ao mesmo tempo que o da percepção consciente. Juntas, consciência e ética são a forma espiritual da existência, que não estava representada na biosfera antes de nós, seres humanos. Antes do início da Era Cristã, segundo o historiador inglês Arnold Toynbee, o ser humano já tinha consciência de que a biosfera é um invólucro finito em torno da superfície do globo, mas a verdade é que, até o terceiro quartel do século XX, a humanidade havia subestimado o seu recente aumento no poder de perturbar o delicado equilíbrio de forças, auto-regulador e auto-preservador, do sistema Terra.

A Permacultura parte de uma visão ética integradora e holística, capaz de nos guiar na direção de um futuro sustentável, com a perspectiva de permanecermos na biosfera por mais dois bilhões de anos. Com efeito, o conjunto das nossas aspirações, valores e princípios devem reunir todos aqueles que acreditam nas forças de conjunção, que solidarizam, fraternizam e universalizam. Afinal, a natureza, que inspira as atitudes, as relações e o trabalho dos permacultores, não conhece exclusão.

Cabe a nós considerar as interdependências entre natureza, humanidade, pobreza, degradação ambiental, injustiça social, conflitos étnicos, paz, democracia e crise espiritual. Cabe a nós reconhecer, além da materialidade humana, a subjetividade e a espiritualidade, sem as quais não seremos capazes de reformar nossos pensamentos e nossas atitudes.

Ignorar as dimensões subjetiva e espiritual do ser humano e o seu sentimento de religiosidade é minar o fundamento de uma ética universal, assegura Leonardo Boff em seu livro Ethos Mundial – Um consenso mínimo entre os humanos. “Só setores racionalisticamente arrogantes da sociedade mundial desprezam esse tipo de argumentação, seja porque perderam o acesso à experiência do sagrado e do religioso, seja porque vivem alienadas da vida concreta de seus povos.” Até mesmo os politólogos percebem a importância das religiões para as políticas globais. P. Huntington escreveu: “No mundo moderno, é a religião uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas.”

Os grandes textos sagrados abrem caminho para que nos tornemos perma-cultores, exortando-nos a rejeitar as solicitações do mundo moderno de dedicação ao acúmulo de riqueza e poder, como fizeram os fundadores da Permacultura. No Evangelho de Mateus, por exemplo, encontramos: “Olhai os lírios do campo como crescem: não trabalham nem fiam. Digo-vos que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles.” O Tao Te Ching, escrito na China por volta do século VI a.C., adverte-nos: “Entesa um arco ao máximo e desejarás ter parado a tempo”. São preceitos pregados e praticados por homens santos que, quando são aceitos como regras práticas de conduta por pessoas conscientes da presença espiritual que está por trás dos fenômenos, levam à mudança no coração – a única que será capaz de nos fazer redimir a Mãe-Terra pela vitória sobre a cobiça agressiva e suicida dos poderosos.

A Permacultura nasceu inspirada nos poemas de Lao-Tse, segundo o próprio Bill Mollison: “Por amor e respeito pela Terra, eu desenvolvi uma filosofia próxima ao Taoísmo, baseado na minha experiência com sistemas naturais”. Sem dúvida, ele concordaria com as palavras do filósofo Huberto Rohden: “Somente quando o homem possui a reta experiência cósmica do seu Ser, pratica ele a reta vivência ética no seu agir.”

Responsabilidade social e ecológica

A ética da Permacultura supõe a restauração do sujeito responsável, comportando a exigência do auto-exame, a consciência de nossa parcela de responsabilidade sobre o destino planetário, e não somente no que diz respeito ao presente, mas também ao futuro. “Devemos nos sentir responsáveis – como se a luta por inteiro dependesse unicamente de nós -, mas também não-responsáveis por todas as barbáries cometidas por inconsciência ou vilania”, assevera Edgar Morin.

Além de buscar a garantia das condições para a sustentação da vida na Terra, será preciso salvaguardar o pobre, o oprimido, o marginalizado e o excluído, que são os seres mais ameaçados do planeta. Os permacultores precisamos pensar também no design social, se quisermos exercer plenamente nossa função de jardineiros, fundada no princípio da res-ponsabilidade e da reverência diante da vida. A ética do cuidado e da solidariedade pode ser assumida conscientemente num projeto político em favor dos direitos humanos e da natureza.

Amor, poesia e sabedoria

O enfrentamento dos grandes desafios contemporâneos da humanidade consiste na construção de uma cultura que nos permita religar o pensamento racional, empírico, técnico e também o saber simbólico, mitológico e mágico, fazendo o intercâmbio dos valores para atualizá-los, colocá-los em sintonia com o mundo no qual vivemos, com as questões vitais que nos são postas. Será preciso, por exemplo, abrir mão da mitologia do progresso, que ainda existe como uma lei da história segundo a qual a ciência e a técnica têm a missão providencial de solucionar todos os problemas humanos. Sabemos hoje dos limites de um e de outro.

Teremos que reaprender a aprender. Reaprender é mudar as estruturas do pensamento, e a Permacultura nos lança este desafio, oferecendo-nos o pensa-mento sistêmico e a idéia de síntese entre ciência e sabedoria popular, convidando-nos a acordar de um estado de sonolência povoado de racionalizações.

Reordenar o pensamento é, além de assumir a ética do cuidado e da solida-riedade, deixar-se mover por uma compreensão poética da vida, que permite entender as pessoas como seres de desejo, de amor, de relação – os únicos que so-nham acordados e são capazes de cons-truir, não “o melhor dos mundos, mas um mundo melhor”, segundo Morin.

A poesia é matéria para um novo aprendizado das coisas. Permite-nos ver o mundo pelo avesso, e o avesso pelo mundo, para que as pessoas possam, “em pleno uso da poesia”, funcionar “sem apertar o botão”, como nos ensina o poeta Manoel de Barros.

A ética como estética da vida e do pensamento nos levará aos caminhos da transformação necessária à salvação do mundo. Mas para assumir um projeto de tamanha grandeza, os permacultores precisaremos multiplicar esforços para abrir a Permacultura à coletividade, dialogar com os governos, com as organizações multilaterais e não-governamentais e com as mais diversas tradições científicas e espirituais. Precisaremos nos engajar em movimentos sociais que lutam por justiça e paz, e, ao par de tudo isso, ainda será preciso alimentar-nos cons-tantemente de amor, “uma das grandes invenções humanas”, no dizer de Otávio Paz. Haveremos de nos investir de paixão e coragem para fazer a caminhada.